No início do segundo semestre de 2023, inúmeras farmácias de manipulação receberam, através do e-mail “notificacao@anvisa.gov.br”, intimação supostamente vinda da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), para retirada de páginas de oferta de produtos manipulados de seus websites. As empresas suspeitaram de fraude eletrônica, visto que a própria Anvisa noticiou, em 2021, que não realizava interações por e-mail. De fato, a Agência mantém um sistema para comunicar-se com o setor regulado, denominado “Solicita”, onde são lançados os comunicados oficiais, tais como como autos de infração, exigências e decisões de processos administrativos.
A mensagem determina a imediata derrubada das páginas de oferta de produtos, alegando “possível irregularidade”, sem especificar a natureza e enquadramento. Ou seja, sem dizer em que medida a prática ofende a legislação sanitária vigente.
É verdade que a Anvisa proíbe as farmácias de manipulação de realizarem e-commerce de produtos manipulados, mesmo dos isentos de prescrição médica, criando barreiras para o estoque mínimo e exposição de produtos magistrais com objetivo de propaganda (RDC 67/07 ANVISA, itens 10.1 e 10.2, 5.14).
Em razão disso muitas farmácias ingressaram no Judiciário para obter provimentos judiciais que as liberem para expor produtos que não dependem de prescrição médica – medicamentos de venda livre, suplementos, cosméticos, fitoterápicos – ao público em geral, algo que não é proibido para drogarias (farmácias sem manipulação).
Afinal, a lei de propaganda de medicamentos (9294/96) permite que produtos sem exigência de receituário possam ser divulgados diretamente ao público consumidor. Já os produtos de prescrição devem focar no profissional de saúde autorizado a prescrever. Neste raciocínio, um regulamento inferior (RDC) não pode criar vedações não previstas em lei.
Pois bem. As notificações através do e-mail focavam em páginas de oferta de produtos manipulados, divulgadas em websites de farmácia. Na ocasião, duas marcas de ativos isentos de prescrição médica apareciam na mira da Anvisa.
Em consulta ao “Fala BR” sobre a procedência das notificações, o órgão confirmou que tem um projeto piloto, que realiza varreduras automáticas de sites para identificar produtos supostamente irregulares, e exigir a derrubada das páginas.
As notificações indicam ser possível esclarecer dúvidas ao responder o próprio e-mail, de modo que, em alguns casos, as empresas atingidas questionaram a procedência das medidas restritivas.
Importante ressaltar que muitas farmácias possuem autorização judicial para e-commerce. No entanto, a Anvisa não dá um retorno as empresas e continua expedindo notificações reiteradas e de modo automático, ignorando os questionamentos, mesmo quando estes apontam para a existência de decisões judiciais favoráveis ao e-commerce de produtos manipulados.
Ninguém aprecia burocracia. Mas o devido processo legal existe para proteger a sociedade de atos arbitrários de autoridades públicas. Não havendo analise das respostas, o direito ao contraditório fica prejudicado.
Ademais, o enquadramento das supostas irregularidades tem sido bastante vago, o que dificulta a análise dos casos para a elaboração de defesas apropriadas a cada caso.
Se por um lado a Anvisa carece de mecanismos efetivos para coibir o comércio ilegal de produtos que afetam a saúde da população por meios virtuais, por outro a agencia não pode atropelar o devido processo legal e ignorar as manifestações das empresas que defendem a regularidade de páginas de ofertas de produtos isentos de prescrição médica.
É preciso equilibrar o interesse público com a esfera de direitos garantidos à iniciativa privada, a fim de que as medidas tomadas pelo poder público possuam suficiente respaldo e legalidade para serem efetivas e sustentáveis, sob o prisma da segurança jurídica.