Claudia Lucca Mano*
O Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria para conferir repercussão geral ao tema da manipulação de cannabis medicinal em farmácias. A Corte Superior deverá analisar a legalidade da comercialização de derivados da planta, em um julgamento com potencial para impactar diversos processos judiciais no Brasil. A discussão envolve a Resolução 327/2019 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que atualmente proíbe as farmácias de manipulação de prepararem fórmulas contendo derivados de cannabis. Apenas farmácias comuns (drogarias), mediante prescrição médica, podem vender esses produtos.
Essa proibição gerou controvérsia, levando várias farmácias brasileiras a recorrerem ao Judiciário em busca do direito de manipular produtos à base de cannabis. Um desses casos, de uma farmácia de São Paulo, chegou ao STF.
Agora, com a formação de maioria, o tribunal reconhece que o tema tem relevância geral, atribuindo à questão o status de repercussão geral. Isso significa que a decisão terá impacto sobre todos os casos semelhantes no país.
Caso o STF confirme a tendência de reconhecer a repercussão geral, todos os processos em andamento sobre o direito das farmácias de manipulação de prepararem medicamentos à base de cannabis ficarão suspensos até que o tribunal emita uma decisão definitiva. Essa decisão terá implicações importantes para o mercado de cannabis medicinal no Brasil, especialmente no que diz respeito ao acesso dos pacientes a tratamentos alternativos e à regulamentação da produção.
O ponto central do debate é o poder regulamentar da Anvisa de proibir exclusivamente as farmácias de manipulação de comercializarem medicamentos à base de cannabis. De um lado, há o argumento de que essa proibição fere princípios constitucionais, como a legalidade e a liberdade econômica, ao restringir a atuação das farmácias de manipulação sem justificativa legal adequada.
As farmácias de manipulação são fiscalizadas e regulamentadas pela própria Anvisa, dispondo de estrutura técnica e de qualidade suficientes para atender a diversas prescrições médicas, desde hormônios, antibióticos e injetáveis até medicamentos de controle especial, como os de “tarja preta”. O argumento da Anvisa, de que essas farmácias não teriam maturidade técnica suficiente para manipular cannabis medicinal, é questionável, uma vez que elas estão aptas a preparar substâncias bem mais perigosas, como morfina e lisdexanfetamina. Todas as farmácias de manipulação contam com assistência técnica de farmacêuticos responsáveis e possuem sistemas de controle de qualidade verificados, além de registrarem o uso de cada grama ou mililitro de insumos controlados, como o canabidiol, no sistema de gerenciamento de produtos controlados mantido pela própria agência.
Além disso, apenas as farmácias de manipulação têm a capacidade de ajustar dosagens para personalizar as fórmulas conforme a necessidade de cada paciente, oferecendo diferentes formas farmacêuticas, como supositórios, filmes orodispersíveis, óleos, sprays e cremes.
Dada a relevância do tema, o relator do processo, ministro Alexandre de Moraes, votou pela aplicação da repercussão geral, destacando que a decisão do STF poderá estabelecer um parâmetro uniforme para julgamentos em todas as instâncias judiciais. Isso se faz necessário diante das divergências nas decisões dos tribunais inferiores: algumas permitiram a manipulação de produtos à base de cannabis, enquanto outras a proibiram com base na norma da Anvisa.
Importante ressaltar que não há expectativa de um julgamento rápido, o que pode, na prática, impedir que farmácias que buscam o direito no Judiciário obtenham decisões favoráveis de imediato, obrigando-as a esperar pela decisão final do STF.
Por outro lado, o julgamento deverá trazer clareza e uniformidade ao setor, impactando tanto a cadeia produtiva quanto os direitos dos pacientes que utilizam esses medicamentos para tratamentos médicos.
A decisão do STF sobre a manipulação de cannabis em farmácias será um marco regulatório e judicial no Brasil. O tribunal determinará se a restrição imposta pela Anvisa se sustenta constitucionalmente ou se as farmácias de manipulação poderão expandir seu papel no fornecimento de medicamentos à base de cannabis, sempre respeitando a legislação vigente e os princípios constitucionais.
*Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária e assuntos regulatórios, fundadora da banca DLM e responsável pelo jurídico da associação Farmacann